Road to Nowhere: As Dragagens do Sado e o Aeroporto do Montijo – Luís Fazendeiro

De acordo com um relatório recente da Agência Ambiental Europeia, os sectores da aviação e do transporte marítimo registaram o maior aumento de gases de efeito de estufa (GEE) nas últimas décadas. Se as tendências actuais se mantiverem, estima-se que em 2050 estes 2 sectores sejam responsáveis por cerca de 40% de todas as emissões de dióxido de carbono, a nível mundial.

Pois nem de propósito, no passado dia 8 de janeiro de 2019 houve dois desenvolvimentos relacionados com esta temática em Portugal, ambos com a possibilidade de enormes repercussões. A 1ª foi a assinatura do acordo entre o Governo português e a Vinci, multinacional de origem francesa que detém o controle da ANA (Aeroportos de Portugal) até 2062 (por 50 anos! Por este privilégio, a Vinci, em 2012, pagou apenas 3 mil milhões de euros, no que foi considerado o negócio do ano em termos de aeroportos pela World Finance Awards… Pudera! Se só em 2017 a ANA anunciou lucros de perto de 250 milhões…), para o início das obras de expansão do aeroporto da Portela e a construção de outro aeroporto no Montijo, na Base Militar BA6. O 2º acontecimento foi a emissão do TUPEM (Título de Utilização Privativa do Espaço Marítimo) Nº 030/01/2019, que permite a imersão de areias no delta do estuário do Sado, num valor de 2.6 milhões de metros cúbicos.

O novo porto de águas profundas de Setúbal

Vamos começar pelo 2º ponto, uma vez que tem tido menos atenção mediática. O objectivo destas obras de dragagem, para as quais o TUPEM acima referido é válido por 5 anos, até ao final de 2024, é Setúbal passar a ter um porto de águas profundas, de modo a poder acolher os maiores navios do mundo, ainda que já haja um a menos de 60km de distância, logo ali ao lado, em Sines. Assim, as operações de dragagem não se reduzem a uma mera operação de manutenção. O objectivo é retirar cerca de 6.5 milhões de metros cúbicos de areias, parte delas contaminadas com pesticidas, metais pesados e materiais cancerígenos, do fundo do estuário do Sado, numa faixa ao longo de 13km, que vai desde a barra até ao cais de Setúbal. E depois depositá-las mesmo à entrada do estuário! Baia-de-Setubal-1

A responsável pelo gestão do processo é a Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra (APSS), Sociedade Anónima. A sua presidente, Lídia Sequeira, foi já gestora de uma empresa de consultadoria da actual Ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, a pessoa que a nomeou para esse cargo na APSS.

Tal como sucedeu no caso do furo para prospeção de petróleo ao largo de Aljezur, este projecto é contestado até por vários dos principais grupos empresariais da região, devido aos riscos que pode trazer para o turismo, para a pesca local e para o turismo de natureza. Relembre-se que o Sado é um dos pouquíssimos estuários em toda a Europa onde existe uma comunidade de golfinhos (28 na última contagem) a viver todo o ano. Além do direito à vida que estas magníficas criaturas certamente deveriam ter, este é também um sinal da relativa qualidade e biodiversidade das águas do estuário, que existem num equilíbrio frágil – e do qual centenas de pessoas na região dependem economicamente!

Mas nas incríveis palavras da Ministra do Mar, que parecem saídas de um romance de Eça de Queiroz, o que é preciso evitar a tudo o custo é “escalar no Porto de Setúbal o refugo das frotas mundiais”. Ou seja, conseguir trazer para lá os maiores e mais deslumbrantes navios do mundo. O resto é conversa! Eis-nos pois a revisitar uma velha visão, ainda longe de desaparecer, de Portugal como o país que procura repetir, a custo, aquilo que tantos outros já deixaram de fazer há décadas, constantemente envergonhado de si próprio e com receio de não estar suficientemente “up-to-date”.

No passado dia 15 de Dezembro houve uma Assembleia Popular na União Setubalense, onde cerca de 200 participantes, incluindo cientistas, pescadores, ambientalistas e donos de pequenas empresas, manifestaram a sua total discordância com este projecto, bem como o propósito de tudo fazer para o travar. Entre estes encontrava-se o Movimento Cívico SOS Sado, que muito tem feito não só para informar a população sobre os riscos implicados como para travar as obras, inclusive através de processos judiciais. Várias outras associações, como a Zero e o Clube da Arrábida, ou os partidos políticos PAN, Bloco de Esquerda e PEV manifestaram já a sua total oposição contra o projecto, mas o risco continua a pairar sobre todo o estuário do Sado, sobre as suas várias Reservas e Parques Naturais e sobre a população local.

O novo aeroporto do Montijo

Já o aeroporto do Montijo tem sido alvo de um pouco mais de atenção mediática, por razões óbvias. Os factos são já bem conhecidos. O actual aeroporto Humberto Delgado começa a dar sinais de saturação, logo os lobbies do turismo e do sector imobiliário exigem que não se percam quaisquer potenciais passageiros. Nos últimos 7 anos, o número anual de passageiros na Portela quase duplicou, passando de 15 milhões em 2011 para 29 milhões em 2018, segundo dados da ANA. Ora as filas, atrasos de vôos e reclamações começam agora a prejudicar o negócio (ou melhor, a impôr alguns limites, ainda que modestos, ao seu crescimento), pelo que há que encontrar rapidamente maneiras de despejar mais pessoas em Lisboa, dê por onde der. Entretanto a expansão prevista para o aeroporto Humberto Delgado, na Portela, já vai permitir um aumento enorme na sua capacidade máxima, havendo o objectivo declarado de este atingir os 50 milhões de passageiros. Será que alguém ainda acredita que a cidade de Lisboa aguente ou necessite de tamanha quantidade?! aircraft-queue-e1377251576844

Os vários mitos em relação à opção do Montijo, que está agora prevista para ser concluída em 2022, foram já desmontados pela Plataforma Cívica Aeroporto BA6 Não!, que conta com o apoio técnico de vários especialistas, tanto nas áreas da engenharia civil como da aeronáutica e da proteção ambiental. As contrapartidas incluem o ruído e a poluição ambiental que as dezenas de milhares de habitantes em redor terão de sofrer. Existe ainda um risco muito real de colisões entre aeronaves e aves de grande porte, num dos estuários mais importantes de toda a Europa, em termos de biodiversidade. Devido à importância desta obra, e ao enorme número de sectores que abrange, desde o ordenamento do território, ao Ambiente, mobilidade, recursos hídricos ou habitação, a própria lei portuguesa indica que esta deveria ser alvo de uma Avaliação Estratégica Ambiental e no entanto o Estado está disposto a dar o aval à mesma, sem que haja sequer um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aprovado. Quando questionado sobre o que sucederia se a Agência Portuguesa do Ambiente desse uma opinião negativa acerca da obra, o Primeiro Ministro admitiu no Parlamento, quase com orgulho, que “não há plano B”!

Uma má ideia nunca vem só!

Na verdade, estes 2 projectos megalómanos e mal-pensados têm muito mais coisas a uni-los do que a separá-los e são sintomas de uma preocupante tendência global. Senão vejamos:

– ambos levarão a um aumento considerável das emissões de gases de efeito de estufa;

– em ambos os casos serão os sectores mais desprotegidos das populações locais que sofrerão de forma desproporcional, e em 1ª mão, os seus impactos, seja o ruído e a poluição, no caso do novo aeroporto, ou a provável contaminação de águas e espécies marinhas, bem como perda de actividade económica, no caso das dragagens em Setúbal;golfinhos1

– em ambos os casos o processo está a ser conduzido por empresas privadas (sejam elas a Vinci, dona da ANA, ou a APSS, que administra o porto de Setúbal), com o Estado português a ir a reboque, em nome de interesses económicos de curto prazo, claramente prejudiciais para o interesse nacional;

– em ambos existe (felizmente!) um largo sector da população local que se opõe aos mesmos, bem como várias organizações que lutam pelo cancelamento das obras;

– finalmente, ambos põem em risco, sem real necessidade, 2 dos estuários mais importantes da Europa, em termos de biodiversidade!

As alternativas para esta tendência derrotista, condenada ao fracasso, são também cada vez mais, e passam todas por uma economia mais localizada e justa, em que a obsessão pelo crescimento a todo o custo deixa de ser o factor central e estruturante de toda a sociedade.

A estrada para lugar algum

Em meados dos anos 80, os Talking Heads cantavam: “We’re on the Road to Nowhere”.

Nessa altura, a causa de maior preocupação eminente era o possível conflito nuclear entre as duas super-potências, mas as questões ambientais não andavam muito longe, em particular o buraco da camada de ozono, as chuvas ácidas e – num distante 3º lugar, mas ganhando rapidamente espaço na agenda pública – o aquecimento global. Para quem tiver o mínimo de consciência acerca da magnitude dos riscos que “estamos” actualmente a correr com a biosfera do planeta (o único que conhecemos capaz de suportar vida em grande escala), o refrão de “Road to Nowhere” soa cada vez mais premonitório e assustador!

Este “estamos”, diplomático e algo antiquado, é a forma polida de designar um hipotético “colectivo humano”, mas na verdade a decisão de correr estes enormes riscos, em nome de toda a espécie humana e de grande parte da vida neste planeta, é tomada, quase diariamente, por uma pequeníssima elite de decisores políticos, gestores de grandes empresas e de milionários! Para as actuais classes políticas (supostamente) encarregadas de avaliar as decisões que levam a novos aeroportos, a novos portos de águas profundas, não parece haver outra alternativa senão a de marchar alegremente, e cada vez mais depressa, em direção a um precipício cada vez mais próximo.

Temos hoje o dever moral de tudo fazer para não nos deixarmos arrastar por eles!

Os mapas da ENMC: uma história contada em imagens – Luís Fazendeiro

0. Este é um artigo sobre a Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis (ENMC), a principal autoridade para o licenciamento de concessões de gás e petróleo em Portugal. No seu estado actual esta existe desde 2013, tendo herdado várias responsabilidades da anterior EGREP – Entidade Gestora de Reservas Estratégicas de Produtos Petrolíferos, E.P.E. E.P.E. quer dizer Entidade Pública Empresarial.

1. No Outono de 2015, há já quase 3 anos, a ENMC gerou a figura 1 deste artigo, identificando as várias concessões de gás e petróleo, activas (15) ou em negociação directa (3) na altura, bem como as respectivas companhias (identificadas ao fundo da figura). Os nomes das concessões Batalha e Pombal, na zona Oeste, em terra, estão trocados na legenda.1-2015-09-Mapa Exploracao de hidrocarbonetos_nomes

Nas concessões offshore, por serem no mar, a Autoridade Competente para estes contratos consiste da Direção Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM) e da ENMC. Mas em terra a ENMC é a única Autoridade Competente. Por exemplo, nos contratos denominados Batalha e Pombal.

Mas que raio é uma Autoridade Competente e porque há-de alguém ralar-se com isso?! Prometo que a resposta é divertida! Existe uma coisa chamada Directiva Europeia 2013/30, que procura regular a “segurança das operações offshore de petróleo e gás”. Esta foi depois transposta para a legislação nacional (boring!, eu sei; mas vai valer a pena, juro!) através do Decreto Lei 13/2016, de 2016, onde no Artigo 3º se encontram definidas as competências da AC.

E é isto, além de outras coisas, que a ENMC é, à luz da lei portuguesa: uma “Autoridade Competente” na gestão do licenciamento e supervisão de contratos de gás e petróleo (para prospeção, pesquisa, desenvolvimento e produção, tudo num só contrato, como o nunca-saudoso DL 109/94, de 1994, tão mal definiu e continua a definir!)!

2. No princípio de 2016, a ENMC gerou a figura 2 deste artigo, identificando as várias concessões de gás e petróleo activas ou em negociação directa. As concessões na Bacia do Alentejo “encolheram” um pouco, devido a uma restituição de 50% prevista nos contratos (trocado por miúdos: já não lhes interessava essa parte!) Os nomes das concessões Batalha e Pombal, em terra, estão trocados na legenda. (Se ainda duvidam, consultem os contratos originais aqui e as suas respectivas coordenadas. Estão na página 25 dos mesmos.) Errar é humano e todos cometemos erros, inclusive por duas vezes seguidas. Quem estiver inocente disto que atire a primeira pedra!!!

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3. No princípio de 2017 a ENMC gerou a figura 3 deste artigo, identificando as várias concessões de gás e petróleo, activas ou em negociação directa. Notem que já caíram aqui dois dos contratos, no Algarve, em terra (os da “saudosa” Portfuel), nem resta nenhum dos que estavam em negociação directa. E isso nunca teria acontecido se não fosse a mobilização popular, um pouco por todo país, mas em particular no Algarve. Ah, mas os nomes das concessões Batalha e Pombal continuam trocados na legenda… Será que alguém poderia avisá-los, por favor?

Os contratos Batalha e Pombal foram assinados pela ENMC, enquanto representante do Estado Português, ou seja, supostamente de todos nós, e pela “Australis Oil & Gas Portugal” (disclaimer: apesar de parecer título tirado de um filme do James Bond ou romance do Thomas Pynchon, é mesmo o nome que está no contrato, juro!), esta já com sede em Portugal, no dia 30 de Setembro de 2015. Sim, eu sei, as eleições legislativas foram no dia 4 de Outubro, a seguir… Eeeeee? Todos os dias se assinam contratos em Portugal! (Disclaimer: Não há aqui qualquer espécie de insinuação, apenas uma breve listagem de factos. Ou talvez devesse dizer antes: “todos os dias úteis”? Certo, my bad!) Em conjunto cobrem uma área de cerca de 2300 quilómetros quadrados, numa das zonas mais densamente populadas do país, e com alguma da produção agrícola mais significativa. Mas não vão ao site da ENMC, confirmem antes os contratos aqui, só por precaução…

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4. No final de 2017, a ENMC gerou a figura 4 deste artigo, onde já restam apenas 9 contratos dos 15 originais. Isto deveria ser um enorme motivo de orgulho e satisfação para qualquer pessoa que tenha contribuído, por pouco que fosse, nem que fosse por participar numa só marcha. Mas é impossível não mencionar aqui (e sem nenhuma ordem específica) a Plataforma Algarve Livre de Petróleo, a ASMAA, a Campanha Linha Vermelha, o Alentejo Litoral pelo Ambiente, a Sciaena, o Tavira em Transição, Peniche Livre de Petróleo, o Futuro Limpo, o Climáximo e tantas outras organizações, sem as quais isto nunca teria acontecido!4-2017-Mapa-concessao_Alentejo-Peniche-Oeste

Bom, mas é aqui que eu começo a ficar um bocado chateado, ainda que divertido ao mesmo tempo! Já adivinharam, claro, os nomes das concessões Batalha e Pombal continuam trocados na legenda… E isto é quase de certeza defeito meu, talvez por ter esta (de)formação académica de achar que se deve ter alguma espécie de (tipo, um bocadito ao menos, que seja!) rigor no que se faz! Conferir algumas vezes os cálculos antes de fazer um discurso em público, de publicar um relatório ou um artigo científico… Tentar olhar para as figuras, evitar fazer o mesmo erro 4 vezes seguidas. É que se isso acontece, já começa a parecer um bocado, tipo… burrice ou incompetência! Numa organização com mais de 30 funcionários será que não há uma pessoa que olhe para o raio das figuras com alguma atenção?! Se calhar até sub-contrataram o trabalho a outra entidade, cheia de jovens advogados estagiários, ou de geólogos contratados em regime de recibos verdes; mas a responsabilidade última recai sobre a ENMC! São afinal a Autoridade Competente ou não são?!

Bem, mas e se ninguém verificou isto, então que mais é que não verificaram?! Será que alguém na ENMC verificou com atenção toda a lista de centenas de produtos químicos que as concessionárias ENI Portugal B.V. (formada em 2014, com sede nos Países Baixos e capital social de 20 000 euros – não, isto não é um erro, como os da ENMC, são mesmo vinte mil! Já o aluguer do SAIPEM 12000, que quer furar ao largo de Aljezur, e restantes custos operacionais, estão avaliados, segundo as concessionárias, em cerca de 1 milhão de euros por dia!) e a Petróleos de Portugal – Petrogal, S. A. (vulgo GALP) pretendem utilizar na dita sondagem de pesquisa Santola-1X ao largo de Aljezur? E que esta lista de facto respeita as convenções OSPAR e PLONOR, como a ENMC afirma a pés juntos? As siglas podem parecer aborrecidas (google, google, já!), mas isto é mesmo importante, até porque vai parar ao mar e pode muito bem acabar nos pratos de alguns de nós, por exemplo na forma de peixe ou de marisco. Ainda que a ENMC tenha assinado documentos a dizer que sim, que verificou tudo, com o maior dos rigores e a mais escrupulosa atenção ao menor detalhe!

Note-se que, e apesar da decisão do Tribunal Fiscal e Administrativo de Loulé no dia 13 de Agosto, que deu razão à Providência Cautelar da PALP, intimando as concessionárias ENI/GALP a não fazer quaisquer trabalhos de prospeção ou preparação da mesma, às 12 horas do dia 14/8/2018 em que escrevo isto, estas ainda não tinham anunciado publicamente qualquer intenção de desistir da sondagem de pesquisa!

E será que a ENMC também verificou mesmo mesmo mesmo que a lama que vai ser utilizada na perfuração vai ser de facto à base de água ou antes à base de óleo? É que no relatório submetido a consulta pública para apreciação da Avaliação de Impacto Ambiental (“Elementos para Apreciação prévia…”, na página 30 de 229, 4º parágrafo) a ENI ainda deixa em aberto a 2ª hipótese… Ainda que esse tipo de lamas já quase não se utilize neste género de operações devido aos seus efeitos nocivos no meio ambiente! Verificaram todas as pressões geradas dentro do furo de prospeção? E já agora: verificaram mesmo que o revestimento de cimento que é suposto proteger o furo – que pode ir até 3km de profundidade no subsolo marinho – do impacto de todos os sismos que ocorrem quase diariamente naquela região, com epicentros a menos de 100km do Santola-1X, de facto consegue suportar todos esses impactos? E até que magnitude sísmica? (Eu sei que há muito gente que não gosta mesmo nada, NADA do furo, mas se este sofrer uma explosão ou grande derrame – “grande”, sim, porque os pequenos ocorrem invariavelmente – vai ser ainda pior! Mas isto para o povo português, claro, pois no dia a seguir à desgraça o mais provável é a chamada “ENI Portugal B.V.”, criada em 2014 com o único objectivo de explorar esta concessão, abrir falência e bazar para os Países Baixos, Itália, ou o que quer que seja, com os seus 20 mil euritos escondidos no bolso, e ainda se ficar a rir de todos nós! Claro.)

A ENMC também verificou que o chamado Blow Out Preventer vai de facto funcionar a 100%, em 24 sobre 24 horas, durante os 46 dias da operação, tal como a ENI Portugal, com sede nos Países Baixos e (repito) capital social de 20 mil euros, afirma? É que na prospeção do Deepwater Horizon, em 2010 no Golfo do México, alguém (alguma “Competent Authority”) também disse que tinha verificado isto, mas depois correu mal…

5. Resta terminar a saga das figuras, e no começo de 2018 a ENMC finalmente divulgou a figura 5 deste artigo! Sobram agora os 3 contratos na costa alentejana e os… 2 na zona Oeste… Batalha… Pombal… Bom, verifiquem vocês mesmos. Só o falar disto já soa estúpido! Existem mais mapas, claro, com pequenas diferenças, talvez até (quem sabe?) alguns sem erro (embora eu não os tenha visto!), ou com outros erros originais. Podem verificar o site da ENMC aqui para o estado actual dos mesmos. Mas se esta eventualmente corrigir a gaffe (improvável, mas: hashtag #MakeENMCSmartAgain), passados cerca de três anos e tantas, tantas versões, podem sempre continuar a ver as versões originais no site da PALP.5-2017-10-sem-Camarao

Mas o que realmente importa não é a patente ineptitude desta “Entidade Pública Empresarial”, que o actual Governo tentou extinguir em 2016Apenas para descobrir que, caso o fizesse, teria de pagar um empréstimo obrigacionista no valor de 360 milhões… Obviamente que o Ministro das Finanças Mário Centeno não terá achado muita piada à ideia, e com alguma justificação diga-se. Seria, no entanto, muito interessante perceber a quem ao certo é este dinheiro devido. Certamente tratam-se de fundos de investimento altamente complexos e que a grande maioria dos cidadãos comuns, ignorantes e pacóvios como nos querem pintar, ou mesmo “índios”, se forem do Algarve, jamais compreenderia. Mas as hipóteses de não haver lá qualquer dinheiro ou ações de alguma empresa petrolífera, são no meu entender, muito, muito pequenas, embora possa estar enganado, claro.

E ainda se lembram da tal Directiva Europeia? Do Decreto-Lei 13/2016 de que falámos no começo? É que o seu Artigo 3º, alínea 2c) diz que é da competência da AC: “Supervisionar o cumprimento pelos operadores dos requisitos estabelecidos pelo presente decreto-lei, incluindo inspeções, investigações e medidas coercivas, em articulação com o GAMA e o IPMA, I. P.;”

E será a ENMC realmente competente para o fazer? Será esta entidade idónea? É possível continuar a acreditar que receber as rendas das petrolíferas relativas às concessões de gás e petróleo não compromete de todo a isenção da ENMC? Quantas inspeções planeia a ENMC realizar ao furo de Aljezur e em que condições? Têm meios técnicos para verificar de forma independente o estado das operações, o nível de contaminação de poluentes no mar, ou de eventuais derrames de petróleo, a 1070 metros de profundidade e a 46 km da costa? E merece esta entidade a enorme responsabilidade de continuar a gerir grande parte das nossas costas, dos nossos mares, do nosso território, depois de ter entregue boa parte destes a troco de quase nada?

O que importa mesmo, mesmo, mesmo é que na tal figurinha incompetente e sistematicamente mal feita já só restam 5 contratos dos 18 originais, quer em vigor ou em negociação directa. E que a sua duração depende agora de todos nós! Mas cheira-me que já não vai ser muito longa…

As areias betuminosas do CETA – Luis Fazendeiro

Na semana passada, o Parlamento Europeu aprovou a ratificação do CETA, o Acordo Económico e Comercial Global entre o Canadá e a União Europeia, quase oito anos após o começo das negociações. As elites políticas europeias conseguiram assim oferecer um excelente presente a si próprias e às maiores corporações americanas e europeias. A esmagadora maioria dos 21 deputados portugueses votou a favor, com a excepção honrosa de Ana Gomes (PS), João Pimenta Lopes, João Ferreira e Miguel Viegas (PCP) e Marisa Matias (BE), que votaram contra. Maria João Rodrigues (PS) não esteve presente na votação.

Se lermos as comunicações oficiais da UE, fica-se com a sensação de que esta foi uma vitória gigantesca para o multilateralismo e a cooperação entre os povos. A Comissária Europeia para o Comércio, Cecilia Malmström, realçou que o Canadá “é um aliado próximo da Europa. Compartilhamos valores e ideais, e um compromisso com mercados abertos e políticas sociais justas”. O que fica aqui subentendido é que o Canadá, tal como a União Europeia, é um país “bonzinho”, que protege os seus trabalhadores, o ambiente, os mais desfavorecidos, que acolhe refugiados. Ao contrário de outros países “mauzões”, com os Estados Unidos e a sua nova administração Trump à cabeça, que querem “construir muros em vez de pontes” (assumindo aqui que o CETA é uma dessas pontes…), e até (horror dos horrores!) retirar-se dos acordos de comércio livre, como o NAFTA.

O que estará então errado com esta narrativa? Porque razão têm tantas organizações civis europeias e canadianas lutado contra este acordo com tanta veemência nos últimos anos? Vamos aqui tentar responder a esta questão, mantendo sempre em primeiro plano as questões ambientais e terminando com uma consideração geral sobre o futuro político da Europa.

Os acordos de comércio livre

Apesar de ser um parente próximo de outros grandes acordos internacionais, como o TTIP (entre UE e EUA), o TISA (acordo de serviços entre 23 membros da OMC, incluindo a UE), o TPP (entre EUA e nações do Pacífico) ou o NAFTA (entre México, EUA e Canadá), o CETA tem recebido muito menos atenção e escrutínio por parte do público europeu. Um dos elementos que une todos estes tratados é aliás o secretismo com que têm sido negociados e a falta de consulta pública. Em contrapartida assiste-se em todo o processo a um enorme envolvimento das maiores empresas multinacionais, desde os gigantes da agro-pecuária e da indústria financeira, às (como não podia deixar de ser) grandes petrolíferas, com particular destaque para a Exxon. E que em muitos casos se crê terem escrito largas porções dos Acordos.

Uma das componentes mais perigosas destes acordos é o mecanismo de resolução de disputas entre os estados e as empresas. No caso do CETA este começou por chamar-se IDSD (investor–state dispute settlement) para se chamar agora ICS (Investment Court System). Além da mudança de nomes, o princípio fundamental mantém-se. Trata-se de um tribunal que, actuando à margem dos sistemas jurídicos nacionais e europeus, é convocado para julgar casos em que uma determinada corporação (com vastos recursos monetários e legais) alega que um governo agiu de forma considerada injusta para os interesses dessa empresa. Após intensa pressão pública a UE alterou algumas das regras respeitantes à composição destes tribunais à revelia da lei, mas os principais riscos mantêm-se. Um estudo recente da ClientEarth refere que a aprovação deste sistema equivale à criação de um sistema paralelo de (in)justiça dentro da UE.

Devido a este mecanismo de ISDS, o Canadá foi já alvo de 39 processos, tendo de pagar cerca de 130 milhões de euros de indemnizações, na sua maioria a companhias norte-americanas. Alguns casos típicos incluem a implantação de duas plataformas offshore ao largo da costa leste do Canadá ou a oposição contra a proibição de fracking no Quebec. Estes casos ocorreram até agora no âmbito do NAFTA, mas o CETA apenas vai alargar o leque de possibilidades, expondo agora a UE a esta nova realidade. Os Governos passam assim a ter receio de adoptar leis que protejam o ambiente, os direitos dos trabalhadores ou populações locais (ou mesmo de pôr em prática a tímida legislação já em vigor), devido à ameaça permanente de serem processados por estas grandes corporações.

As tar sands de Alberta

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Em relação à noção do Canadá como um país amigo do ambiente, esta é uma ideia que precisa urgentemente de ser descontruída. Sobre a liderança de Stephen Harper, entre 2006 e 2015, o Canadá adoptou algumas das políticas ambientais mais regressivas que podemos encontrar entre as economias ditas avançadas. Sobretudo devido ao enorme ímpeto dado à exploração petrolífera na região de Alberta, que acabou por culminar com a retirada do país do Protocolo de Quioto, em 2011.

Situadas no Noroeste do Canadá, junto ao rio Athabasca, e numa região que era até há bem pouco tempo ocupada por floresta boreal pristina, as tar sands, ou areias betuminosas, de Alberta correspondem a uma das maiores reservas de petróleo do mundo, apenas superada pela Venezuela e Arábia Saudita. Só que ao contrário do que sucede nestes países, os depósitos canadianos consistem numa mistura densa e viscosa de betume e areia que tem de ser processada de forma intensa de modo a daí extrair o petróleo. Ora, além de utilizar vastas quantidades de água e destruir todos os ecossistemas em redor, este processo implica um dispêndio de energia muito maior do que o necessário na extração convencional de petróleo. Energia essa que é sobretudo fornecida por mais combustíveis fósseis. O famoso climatologista James Hansen avisou já que a exploração completa destas reservas, naquele que é por muitos considerado o maior projecto industrial de sempre, equivaleria ao fim das nossas possibilidades de manter um clima semelhante ao que a Humanidade conheceu nos últimos milhares de anos.

Com os preços do petróleo a atingirem valores mais baixos nos últimos 2 anos e com a oposição que tem havido tanto nos EUA como no Canadá à construção de novos oleodutos, as petrolíferas estão agora desesperadas para encontrar novas formas de exportar este produto tóxico para novos mercados. Ora, segundo o CETA, e como se pode ler no Capítulo 21 sobre Regulação, Artigo 21.3d: “A cooperação em matéria de regulamentação tem, entre outros, os seguintes objetivos: d) contribuir para melhorar a competitividade e a eficiência da indústria, procurando: iii) seguir abordagens compatíveis em matéria de regulamentação, que contemplem, se possível e adequado: a aplicação de abordagens em matéria de regulamentação que sejam tecnologicamente neutras”.

Todo este legalês quer apenas dizer uma coisa, como outros já antes realçaram: se o Estado está preocupado em, por exemplo, gerar electricidade, não deverá discriminar a favor de uma tecnologia e contra outra, apenas porque esta seja mais poluente ou emita mais CO2. Ou melhor: pode fazê-lo, mas depois também vai ter de defender essa decisão em “tribunal”, um pseudo-tribunal constituído por advogados escolhidos a dedo por corporações com recursos quase ilimitados.

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Portugal livre de petróleo? Se calhar já não…

Muito se tem escrito nos últimos meses sobre a prospeção de gás e petróleo em Portugal, desde o cancelamento pelo Governo dos 2 contratos da PortFuel, até à consulta pública da DRGM sobre o furo em Aljezur, que ignorou a opinião e as preocupações legítimas de mais de 42 mil pessoas. Mas o que se pode dizer é que a ratificação do CETA dificilmente poderia ser pior notícia para a luta contra a extração de hidrocarbonetos e por uma sociedade mais justa e sustentável.

No artigo 8.10.4 do CETA podemos ler sobre aquilo que as empresas consideram um tratamento justo e legítimas expectativas. Assim, o tribunal chamado para julgar o caso (sim, ainda o tal dos ISDS e ICS) deverá ter em conta “se uma Parte fez uma representação específica a um investidor para induzir um investimento coberto, que criou uma expectativa legítima, e em que o investidor confiou na decisão de fazer ou manter o investimento coberto, mas que a Parte tenha posteriormente defraudado.” O que é que isto quer dizer? Se a legislação de um país (Parte) é caduca e completamente desadequada aos tempos actuais, como sucede com o nosso Decreto-lei 109/94, que regula a prospeção e exploração de combustíveis fósseis, isto cria “expectativas legítimas” nas empresas (investidor) de fazer lucros formidáveis, que não devem depois ser frustradas. Mesmo que a saúde das populações, da economia local ou do próprio planeta estejam em jogo.

Para sermos justos, é verdade que o CETA também inclui alguma linguagem vaga e anódina sobre desenvolvimento sustentável (capítulo 22), direitos laborais (23) e comércio e ambiente (24). Mas creio que já todos sabemos que quando chega a hora da verdade o factor “comércio” vai prevalecer sobre tudo o resto. Felizmente só temos que preocupar-nos com as tais multinacionais canadianas “boazinhas”… Ou será que não?

O cavalo de Tróia das empresas norte-americanas

Pouca coisa pode ser dita com certeza acerca das posições políticas do novo presidente Trump, ou mesmo da sua estabilidade mental. Mas em relação ao comércio internacional a sua postura tem sido bastante menos inconsistente que noutras áreas. O novo presidente dos EUA em nenhuma ocasião se mostrou contra o comércio entre nações, apenas contra os termos em que este era feito que, segundo ele, não beneficiam suficientemente as corporações americanas (ou, para usar a sua linguagem: “a América e os trabalhadores americanos”). O seu repúdio recente do TPP, bem como a vontade de renegociar o NAFTA apenas vêm reforçar esta ideia.

Esta é afinal a abordagem típica de um homem de negócios, pensando no curto prazo e em assumir a posição de negociação mais forte possível. Ao

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retirar o país de acordos multilaterais, como o TTIP ou o TPP, o seu plano parece ser o de negociar acordos bilaterais com cada um dos países envolvidos. Nesta situação, os EUA terão obviamente sempre a mão mais forte, enquanto maior potência económica a nível mundial. Mesmo que o parceiro de negócios se chame Japão, China ou Alemanha (isto, claro, assumindo sempre que o seu governo não tenha sido comprometido por alguma potência estrangeira…).

Neste novo contexto geo-político, o CETA pode agora funcionar para as grandes corporações americanas como o perfeito cavalo de Tróia. As empresas norte-americanas com subsidiárias canadianas (e que são a grande maioria das maiores corporações) podem à partida fazer uso do CETA tal como qualquer companhia canadiana ou europeia. Sendo assim, estas passam a beneficiar de um acesso quase ilimitado ao mercado europeu (com mais de 500 milhões de consumidores, e com o nível de vida mais alto de todo o planeta), e sem que a que a nova admistração norte-americana tenha que perder tempo com negociações morosas e aborrecidas (ficando assim com mais tempo para assistir ao canal “noticioso” da Fox). Ou seja, todos os benefícios sem o potencial prejuízo da administração Trump parecer “fraca” a negociar com a Europa. E aqui, todo o crédito deve ser dado em Portugal à Plataforma Não ao Tratado Transatlântico que já de alguns anos a esta parte tem vindo a dizer aquilo que deveria ter sido óbvio para todos nós – que o CETA é afinal ainda mais perigoso do que o TTIP!

E o futuro da democracia europeia?

Depois de ter sido ratificado pelo PE, o CETA será agora votado em todos os parlamentos nacionais dos 28 (ou 27?) países da UE. Em Portugal, o Governo aprovou recentemente um Projecto de Resolução proposto pelo PAN (606/XIII), com vista a promover “o debate alargado com a sociedade civil, nomeadamente com as organizações não-governamentais, sobre o Acordo Económico e Comercial Global (CETA), antes da votação no Parlamento Português”. É agora de enorme importância que o maior número de pessoas e organizações se envovlva neste processo e procure saber mais sobre o Acordo. Supostamente, bastará apenas um dos Parlamentos dos 28 estados-membros votar contra o CETA para este não entrar em vigor, pelo menos na totalidade, mas ainda não é claro como isto poderá funcionar. O que é mais claro é o seguinte.

Em primeiro lugar, que existe hoje uma aliança cada vez mais clara entre partidos de extrema direita e o negacionismo das alterações climáticas. Partidos esses que, se subirem ao poder, como foi o caso de Donald Trump nos EUA, não perderão tempo a destruir todas as poucas regulações ambientais em vigor e a descreditar cientistas e comunicação social. Esta aliança inclui claramente a Rússa de Putin e agora possivelmente a nova administração norte-americana.

Em segundo lugar, e após as vitórias do Brexit e de Trump, os partidos europeus de extrema-direita estão agora na expectativa de um ano verdadeiramente histórico. E poderá 2017 ser visto daqui a 100 anos da mesma forma que hoje olhamos para 1933, ano em que Hitler subiu ao poder? Creio que a resposta é claramente “sim”! Sabemos que a História nunca se repete verdadeiramente mas, e como sucede com a órbita no espaço de fases de um atractor estranho, pode passar por pontos muito pximos dos que já percorreu, tal como está a acontecer hoje em dia.

Face a esta ameaça de proporções históricas, com Le Pen (ela agora prefere que lhe chamem apenas “Marine”, soa melhor) a liderar claramente as sondagens na França, e partidos de extrema direita a posicionarem-se para bons resultados eleitorais na Holanda e Alemanha, a resposta das elites europeias parece ser apenas “mais do mesmo”. Mais acordos de comércio livre, mais medidas neoliberais, menos proteção ambiental e laboral. Ao contrário do que a maioria dos deputados europeus (os 408 que votaram a favor do CETA) parece acreditar, a escolha com que somos hoje confrontados não é entre o nacionalismo exacerbado e o internacionalismo, mas sim entre fascismo ou democracia. Prosseguir cegamente em políticas neoliberais que amplificam as desigualdades sociais, ao mesmo tempo que destroem o planeta e as condições de vida para as gerações futuras, apenas mais força aos argumentos da extrema direita, por mais aberrantes ou desumanos que estes nos possam parecer. Tal como aconteceu no princípio do século passado, se não fôr invertido a tempo, o neoliberalismo será apenas o prelúdio para o fascismo.

No meio de toda a fanfarra sobre “construir pontes”, através de mais acordos de “comércio livre”, uma larga porção das elites europeias parece hoje marchar para o precipício sem ter qualquer ideia do que está a suceder à sua volta…

A central termoeléctrica de Sines: tapar o sol com o carvão – Luis Fazendeiro

A 5 de Outubro deste ano o Acordo de Paris foi finalmente ratificado por um número suficiente de países, e responsáveis por mais de 55% das emissões globais de gases de efeito estufa (GEE). Como tal, as Nações Unidas anunciaram já que o Acordo entrará em vigor a 4 de Novembro, menos de um ano após a sua aprovação.

Mas é preciso ser claro. Se por um lado isto representa um avanço em relação ao anterior Protocolo de Quioto, que demorou 7 anos e 2 meses a entrar em vigor, por outro lado é bem sabido que o Acordo de Paris está muito longe de ser suficiente para evitar as consequências mais catastróficas das alterações climáticas. Os compromissos voluntários de cada país colocam-nos numa trajetória de 2.7ºC-3.7ºC de aquecimento, enquanto as reservas de combustíveis fósseis atualmente disponíveis são já mais que suficientes para estourar o orçamento de carbono que nos permitiria ficar abaixo dos 2ºC de aquecimento. Ou seja, por muito importante que seja ter um acordo internacional nesta área, apenas conseguiremos evitar as consequências mais nefastas das alterações climáticas se houver um poderoso movimento de bases, envolvendo toda a sociedade civil, a pressionar os governos de todos os países do mundo nessa direção.

Isto é particularmente relevante para Portugal por 2 razões. Em primeiro lugar, porque somos talvez o país da União Europeia mais vulnerável aos efeitos das alterações climáticas. Desde a desflorestação à consequente degradação dos solos agrícolas e à desertificação, em particular no sul; desde a catástrofe regular dos fogos florestais à perda de biodiversidade e à menor resiliência que esta implica (caso as considerações éticas e até estéticas não movam as pessoas); desde as pressões sobre as reservas de água potável à vulnerabilidade da nossa longa costa face à subida do nível do mar. Todos estes factores terão consequências difíceis de avaliar no bem estar dos cidadãos, nas actividades económicas, da agricultura ao turismo, na coesão social e até territorial.

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Em segundo lugar, Portugal é ainda (por enquanto) um dos países europeus com maior percentagem de energia renovável. Em termos de contribuição das renováveis para a produção de electricidade ainda vamos estando à frente de Alemanha, França, Reino Unido, Espanha e Itália, embora se calhar por pouco tempo. Uma política concertada e resoluta, com o acordo de todas as forças políticas, poderia fazer com que mantivéssemos esta liderança, que esta fosse usada como exemplo para o resto do mundo e até mesmo como moeda de negociação. Só para dar um exemplo, qual seria a legitimidade moral da UE em implementar sanções ao país se o limite do défice fosse ultrapassado devido a investimentos em mais energia renovável?

O que nos traz então à central termoeléctrica de Sines. Portugal tem actualmente apenas 2 centrais onde o carvão, (o combustível fóssil mais poluente, se considerarmos apenas modos convencionais de extração, isto é, ignorando o gás e petróleo de xisto, as areias betuminosas, etc) é utilizado como combustível: a do Pêgo, na zona de Abrantes, com uma potência de 628MW e a de Sines, com 1256MW. Num estudo de 2014, organizado por uma série de organizações ambientais, a central de Sines foi considerada como uma das 30 mais poluentes de toda a Europa, ficando em 27º lugar. Convém ainda especificar que todos os lugares cimeiros são ocupados por centrais pertencentes a apenas 6 países: Polónia, Alemanha, Reino Unido, Itália, Grécia e Estónia. Espanha e a Holanda têm ainda uma central cada no top 30 das mais sujas, embora menos poluentes do que a portuguesa.

Nos últimos anos a central de Sines é consistentemente responsável por mais de 10% do total de todas as emissões de dióxido de carbono (CO2) nacionais. Assim, para o ano de 2014, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) declarou um valor total de emissões de GEE de 64.8 milhões de toneladas (Mt) de CO2eq (“equivalente a CO2”, isto é, fazendo já a conversão de todos os outros GEE que não o CO2). Nesse mesmo ano, a EDP declarou para a central de Sines um valor de 7.4 Mt CO2eq, semelhante aos valores dos anos anteriores. Ou seja, 11.4% de todas as emissões nacionais em 2014.

Num outro estudo independente, realizado pela associação ambiental Zero, a mesma conclusão foi alcançada. A central a carvão de Sines é de longe a instalação industrial portuguesa mais poluente, em termos de emissões atmosféricas, liderando não só no CO2 como em fluoretos e compostos inorgânicos de flúor (ambos potentes gases causadores de efeito de estufa) e mercúrio, um elemento pesado e extremamente tóxico.

Mais preocupante ainda é o facto de o uso do carvão pela EDP ter aumentado nos últimos anos, em parte devido ao preço mais baixo desse combustível nos mercados internacionais. O que não é de todo claro é se, nestas condições, a energia paga pelos consumidores também baixa proporcionalmente de preço, ou se o Estado português paga menos à EDP por quilowatt-hora, de acordo com as flutuações no preço do carvão. Devido à natureza oligopólica das rendas de energia em Portugal tudo indica que não, e que a EDP poderá estar a acumular (ainda mais) lucros fabulosos, traficando num combustível sujo, que sabemos há muito estar a destruir o nosso ambiente e a pôr a sobrevivência das gerações futuras em risco.

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O Programa Nacional para as Alterações Climáticas (PNAC 2020/2030), elaborado em 2015 pelo Governo anterior, anunciou já o fim das centrais a carvão, tanto de Sines como do Pêgo. A dúvida aqui é se isso acontecerá em 2020 ou se a sua vida se poderá prolongar até 2030 – o que faz toda a diferença. De modo a termos uma hipótese razoável de ficar abaixo dos 2ºC de aquecimento global, a descarbonização da nossa economia terá de acontecer muito mais rápidamente do que tem sido até aqui admitido pelos governos mundiais. E sobretudo, muito mais rapidamente do que as empresas de combustíveis fósseis gostariam de ver acontecer.

Um plano para fechar nos próximos, vá lá, 2 anos as centrais do Pêgo e, sobretudo, de Sines não seria muito difícil de conceber. Em primeiro lugar poderia começar-se por avaliar quanta dessa energia não poderia ser de todo dispensada, com a adoção de regras estritas de eficiência energética. Depois teria de se garantir que os trabalhadores e trabalhadoras dessas centrais beneficiassem de um programa de requalificação, de modo a poderem trabalhar em actividades não destruidoras do ambiente e da saúde pública. Finalmente, a energia dessas centrais, após o devido desconto ganho por medidas de eficiência e poupança, seria substituída em exclusivo por fontes renováveis. Só assim faria a EDP verdadeiramente jus à reputação de companhia limpa e socialmente responsável que tem tentado impôr nos últimos anos. Em vez de tentar tapar o sol com o carvão…

55/55 ou: Os perigos da procrastinação – Luis Fazendeiro

Se pesquisarmos por “55/55” num motor de busca da internet, uma das primeiras entradas que nos surge é um verso belíssimo do Corão: “So which of the favours of the Lord would you deny?”. Mas, e na senda do grande repórter da RTP Luís Arriaga, neste artigo vamos falar de algo muito diferente.

55/55 refere-se aqui ao Acordo de Paris (ADP), negociado por 195 países em Dezembro de 2015, e já assinado por 178 deles. Acordo esse que está muito longe de ser o que necessitávamos para garantir um planeta habitável e seguro para as gerações vindouras, mas que representou ainda assim um passo de gigante na senda das negociações internacionais, dadas as baixas expectativas.

Um facto que talvez seja um pouco menos conhecido é que o ADP, com todos os problemas e insuficiências que manifestamente contem, apenas entrará em vigor 30 dias após 55 países, responsáveis por pelo menos 55% das emissões de gases de efeito de estufa (GHG), o ratificarem. E ratificar, de acordo com o glossário das Nações Unidas, significa um Estado “obter a aprovação necessária para o tratado ao nível interno e promulgar a legislação necessária para dar efeito interno a esse mesmo tratado.”

Dado o alívio com que a aprovação do ADP foi recebida e a fanfarra mediática que se lhe seguiu, seria talvez de esperar que a maioria dos países fizesse tudo ao seu alcance para o ratificar o mais rapidamente possível. Na verdade, uma consWEB.4.23.CARTOON-640x448-procrastulta rápida ao sítio das Nações Unidas mostra-nos que até agora apenas 19 países entregaram os mecanismos necessários de ratificação. Pior ainda, esses 19 países equivalem a uma fracção mínima de 0.18% das emissões de GHG. Quase todos eles são pequenas nações-ilha, como as Fiji, Maldivas, Maurícias ou Tuvalu, os primeiros países a sofrer de forma mais dramática os impactos das alterações climáticas, incluindo o provável desaparecimento de todo o seu território devido à subida no nível do mar. A única excepção é a Noruega, curiosamente o maior produtor de hidrocarbonetos da Europa Ocidental.

Para ajudar a perceber melhor o contexto, caso a China, Estados Unidos e União Europeia ratificassem o Acordo, o número de países subiria logo para cerca de 49 (se incluirmos o Reino Unido…) e a percentagem de emissões para muito perto dos 50%. Bastaria então alguns dos países com emissões mais elevadas, como o Brasil (que já demonstrou a sua vontade de ratificar em breve), Índia ou Japão aderirem para o Acordo, negociado há mais de 7 meses, entrar em efeito. Por outro lado o candidato a presidente dos Estados Unidos Donald Trump já disse claramente o que faria caso fosse eleito. E aqui há que ter em conta que o ADP acabou por não ser vinculativo em grande parte devido à pressão de Obama, para que este não tivesse de ir a votação num Congresso controlado por um partido radical de extrema-direita, que nem sequer reconhece a ciência moderna. Neste ambiente tóxico da política norte-americana é difícil de perceber porque razão o presidente incumbente não está fazer todos os possíveis para que o seu país ratifique o Acordo ainda antes do final deste ano.

Por outro lado, já o anterior Protocolo de Quioto fez uso da mesma regra, 55 países com pelo menos 55% das emissões, para entrar em vigor. E aqui a História talvez nos possa servir de aviso. Tendo as suas negociações finalizado em Dezembro de 1997, apenas entrou em vigor em Fevereiro de 2005, passados mais de 7 anos! Como se isso não fosse bastante, as emissões de GHG a nível mundial aumentaram 25% entre 1997 e 2010, à revelia de tudo o que tinha sido acordado pelas Nações Unidas.

De modo a ficarmos abaixo dos 2ºC de aumento de temperatura média global, o limite acordado em Paris e a partir do qual existem enormes probabilidades de se começar a despoletar mecanismos de feedback positivo potencialmente catastróficos e irreversíveis, o mundo precisa de começar a reduzir as emissões de GHG a uma taxa de ~6% por ano. De momento esse valor parece antes andar por volta de 0%, o que significa que pelo menos as emissões parecem ter parado de aumentar, embora nem isso seja ainda certo. O preço de não fazermos nada, o preço da procrastinação a nível global, começa a ser cada vez mais visível, dia após dia.

Se o processo de ratificação do Acordo não avançar com toda a velocidade, várias conclusões começam a parecer óbvias. Em primeiro lugar, talvez todo este processo não passe de uma manobra de distracção, com poucos ou nenhuns governos, excepto os das já citadas nações-ilha, verdadeiramente interessados em travar a crise climática. A verificar-se, este cenário compromete seriamente a credibilidade das Nações Unidas, numa altura em que as crises que atravessamos são cada vez mais de carácter global e exigem profunda cooperação entre os países.

Por outro lado, toda esta procrastinação lança um sinal claro às empresas de hidrocarbonetos de que não precisam de se preocupar e podem continuar com o mesmo modelo de negócio das últimas décadas por muito tempo ainda. Como exemplo, as indústrias de gás e petróleo gastaram já cerca de 60 milhões de euros no processo de prospecção em Portugal, de acordo com a ENMC. Tudo isto em busca de reservas que muito provavelmente não vão poder utilizar, a menos que destruamos todas as nossas hipóteses de um planeta habitável.

Se esse dinheiro tivesse sido antes aplicado, por exemplo, em geração eólica, poderia corresponder a um total de pelo menos 44 MW de nova capacidade acrescentada à rede de electricidade portuguesa, segundo dados de 2014, um valor modesto (menos de 1% da capacidade de geração eólica actual), mas nem por isso desprezável. Note-se ainda que na geração eólica, tal como na solar, a maioria do custo está na instalação, o combustível (vento) é inteiramente grátis, ao contrário dos combustíveis fósseis. Ou seja, depois do investimento inicial, as empresas têm muito poucas despesas.cartoon-by-ron-tandberg-down-there

Vale a pena repetir. Estas companhias, onde se incluem Repsol, Partex e Galp, preferem gastar 60 milhões de euros em busca de novos reservas de combustíveis fósseis, que talvez nunca venham a poder usar, em vez de investir em energia renovável já, ter o seu investimento coberto num prazo de poucos anos e ver a sua quota de mercado a aumentar. É difícil pensar num sistema económico em que isto possa fazer sentido, a menos que as regras tenham sido completamente distorcidas e tenham pouca ou nenhuma ligação com a realidade física em que todos vivemos. O que parece ser o caso. A aposta deles, que claramente tem sido acertada até aqui, é que a comunidade internacional pouco ou nada vai fazer para resolver o problema e que nas últimas décadas de vida do petróleo, quando as reservas escassearem e o preço for exorbitante, eles farão lucros (ainda mais) astronómicos, mesmo que num cenário de caos global.

E o que fazer nesta situação? Tudo aquilo que possamos! Aderir a um movimento activista. Tomar parte na campanha contra a exploração de gás e petróleo em Portugal. Propôr soluções para o problema e lutar para que estas sejam implementadas. Parafraseando Theodore Roosevelt, “Confrontados com uma crise, a melhor coisa que podemos fazer é tomar a decisão certa, a próxima melhor coisa é tomar a decisão errada. A pior coisa que podemos fazer é não fazer nada.”

Somos nós as pessoas de quem temos estado à espera!

A Agência Internacional de Energia – Luis Fazendeiro

Recentemente, na televisão pública nacional, num programa sobre a exploração de gás e petróleo em Portugal, um consultor da Portfuel anunciou que em 2040 60% de toda a energia mundial ainda seria produzida utilizando combustíveis fósseis [1]. Igual coisa disse também o CEO da Exxon no encontro deste ano de accionistas da empresa, em que 38% dos investidores exigiram, novamente sem sucesso, que a companhia fosse mais transparente sobre como a ameaça do aquecimento global e as resoluções da Conferência de Paris em 2015 poderiam afectar o seu funcionamento.

De onde vêm pois estas estatísticas, se todos os dias novas notícias vêm a público sobre o espantoso crescimento das energias renováveis? A fonte pode ser facilmente traçada à Agência Internacional de Energia (em inglês, International Energy Agency, ou IEA). A IEA foi formada em 1974, por um conjunto de países consumidores de petróleo, no seguimento da crise de petróleo que estava então a decorrer. Um dos seus principais objectivos é o de produzir relatórios fiáveis sobre o consumo actual de energia e as tendências expectáveis para os próximos anos. Para isso, a agência confia sobretudo nas informações disponibilizadas pelas próprias empresas produtoras de energia, o que já por si nos deveria pôr em alerta.International-Energy-Agency

Ao longo dos anos a IEA tem sido alvo de críticas duras por parte de várias organizações. Nomeadamente, a agência é acusada de falhar sistematicamente na previsão do crescimento da energia renovável e pouco ou nada fazer para corrigir os seus erros gritantes nessa área. Um especialista sueco apelidou um dos relatórios da agência como um “documento político”, desenvolvido para países consumidores, com interesse em preços baixos de combustíveis.

O último relatório anual da agência sobre o consumo global de energia foi publicado em Novembro de 2015, um mês antes da Conferência de Paris. No sumário executivo podemos ler que (e vale a pena citar em extenso): “Promessas feitas pelos vários países antes da COP21 indicam um novo impulso no sentido de um sistema energético mais eficiente e com menores emissões de carbono, mas não alteram o quadro de crescente necessidades globais de energia. O uso de energia em todo o mundo deverá crescer em um terço para 2040 no nosso cenário central, impulsionado principalmente pela Índia, China, África, Médio Oriente e Sudeste Ásiatico. (…) Os declínios em emissões são liderados pela União Europeia (-15%), Japão (-12%) e Estados Unidos (-3%). Os preparativos para a COP21 têm sido uma rica fonte de orientação sobre política energética no futuro e as componentes relacionadas com a energia nos compromissos nacionais para a COP21 são reflectidos no nosso cenário central. Eles fornecem um impulso aos combustíveis e tecnologias de baixo carbono em muitos países, trazendo a parcela de energia não baseada em combustíveis fósseis acima do valor actual de 19% a nível global para 25% em 2040.” (O sublinhado é meu.)Scott-Adams-cartoon-21

Ou seja, a IEA diz-nos que, no cenário que considera mais provável, tendo já em conta os compromissos nacionais submetidos à COP 21 (admitidamente demasiado fracos, e implicando um aumento de temperatura de pelo menos 2.7ºC, e não os 1.5º-2ºC do Acordo), o peso das energias renováveis (incluindo a hídrica e bio-massa) vai aumentar apenas 6%, em relação ao consumo total, nos próximos 25 anos. Isto dá uma média de crescimento de ~0.25% por ano. Em relação à capacidade de energia renovável já implementada, este aumento é de cerca de 33%, o que ainda assim significa uma previsão de crescimento de pouco mais de 1% por ano. Até a economia portuguesa tem conseguido crescer acima desses valores nos últimos anos, mesmo em tempos de crise económica e intensa austeridade orçamental!

Mas quais é que têm sido afinal as taxas de crescimento das renováveis nos últimos anos? Um artigo publicado na conceituada revista “Nature Climate Change” em Dezembro de 2015 mostra-nos o seguinte: taxas de crescimento anual de 10.5 % para energia hidro-eléctrica e de 34% para as outras renováveis, na China, entre 2010 e 2014. No resto do mundo temos taxas mais moderadas, mas ainda assim de 3% para a hídrica e 16% para as outras renováveis, no mesmo período. Ainda que estes valores possam estar ligeiramente inflacionados, não há qualquer razão para a IEA prever apenas uma média de crescimento de pouco mais de 1% por ano nas próximas duas décadas e meia, a menos que esteja deliberadamente a proteger os interesses das empresas de combustíveis fósseis, através da propagação de desinformação.

Outro ponto interessante, entre tantos outros que se poderiam realçar, é a previsão de que os Estados Unidos, o país mais rico do mundo e historicamente o maior responsável pelo volume total de emissões, vai (segundo a IEA) diminuir as suas emissões em apenas 3% nos próximos 25 anos! No entanto, num outro relatório recente, a própria IEA diz-nos que as emissões dos EUA, (apenas referentes ao sector energético, mas que é de longe o mais importante de todos), caíram cerca de 12% entre 2007 e 2012.

A razão porque isto é tão importante é o facto da IEA ser o principal órgão de análise que a maior parte da indústria energética, por enquanto ainda dominada pelos combustíveis fósseis, segue – e cita extensivamente! Estes valores aparecem-nos depois replicados de forma acrítica em relatórios governamentais, previsões económicas, etc, como representando a “verdade dos factos” em oposição aos supostos “desejos irrealistas” dos ambientalistas. O facto da IEA não ser uma instituição tão claramente motivada por factores ideológicos como por exemplo o Cato Institute só torna as suas previsões ainda mais perigosas, devido à legitimidade de que ainda vão beneficiando junto de largos sectores da sociedade.

Uma das principais suposições subjacentes às análises da IEA é a de que por muitos cortes nas emissões que os países mais ricos possam fazer (e à indústria não interessam que façam muitos!) tudo isso será compensado pelo enorme crescimento dos combustíveis fósseis nos países mais pobres. E se até aqui todo o foco estava na China, agora que a sua economia começou já a abrandar e a tentar diversificar-se, o foco principal da indústria virou-se para a Índia.

A litania repetida pela indústria é que os combustíveis fósseis são mais baratos (algo que começa a ser cada vez mais disputado, mesmo nesta era de preços historicamente baixos dos hidrocarbonetos) e que para levantar milhões de pessoas da pobreza e fornecer-lhes electricidade esses países vão ter de consumir muito mais gás, petróleo e, sobretudo, carvão, o mais barato dos três. Vemos assim algumas das mais poderosas e rapaces corporações do mundo, como a Exxon, Chevron ou Shell transformadas do dia para a noite em instituições de luta contra a pobreza e a favor do desenvolvimento (neste caso insustentável). Sendo que por acaso (ou talvez não) elas até vão beneficiar de biliões de lucros anuais durante mais algumas décadas, como paga pelo seu trabalho de natureza semi-filantrópica.

Esta falácia é facilmente desmentida. A maior parte da chamada pobreza energética encontra-se hoje na África sub-Sariana e na Índia, concentrada em zonas rurais onde não existe uma rede de distribuição de energia eléctrica. Quando acrescentamos aos custos de uma central de carvão termo-eléctrica os custos de implementar de raiz essas redes já o preço do carvão sobe astronomicamente. Isto, claro, sem contarmos com os custos de saúde, sociais e ambientais que a poluição destas centrais de carvão invariavelmente causa nas populações locais. Nestas regiões (onde, não esqueçamos, a luz solar é abundante) é actualmente mais barato, rápido e eficiente implementar energia solar, uma tecnologia limpa e local. Por outras palavras, é como se as empresas produtoras de telefones fixos, vendo os seus lucros a caírem anualmente, anunciassem que queriam encher a Índia e o continente africano com linhas de telefone, ignorando por completo que o desenvolvimento vertiginoso dos telemóveis nas últimas décadas tornou essa estratégia obsoleta.

Lembrem-se pois destes argumentos da próxima vez que alguém vos acenar com a noção de que “energia renovável, sim senhor, é tudo muito bonito, mas em 2040 ainda vamos precisar de 60% de combustíveis fósseis”, etc. A verdade é que o mundo está já a mudar a uma velocidade muito rápida nesta área e para garantirmos um futuro mais justo e seguro para tod@s no planeta precisamos que mude muito mais rapidamente.

Como diria o grande físico dinamarquês Niels Bohr: “É sempre difícil fazer previsões, sobretudo acerca do futuro!” Está na hora de decidirmos em conjunto que tipo de futuro realmente queremos, em vez de deixar essa decisão nas mãos de grupos de interesses especiais cada vez mais isolados ideologicamente e apenas determinados em proteger as suas margens de lucro, independentemente das consequências. Somos nós aqueles de quem temos estado à espera!

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[1]- Programa Prós e Contras da RTP 1, 23-5-2016, ao minuto 54 da 2ª parte.